terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Ao anoitecer...

Dizem, meu amor, que neste inverno os ventos
passarão a mão pela seara e levarão o trigo;
que os dias serão escuros e frios - e tão curtos
que neles não caberá paixão alguma, por pequena
que seja. Contam que punhais de chuva se abaterão
sobre os pomares; e que as árvores crescerão
como feixes de serpentes, procurando ganhar
desesperadamente o céu. E acrescentam que

os pássaros adivinham tudo isto e que por isso
se calam de manhã - ouço-os bater as asas
num aceno triste; partem para o sul, dizem,
se dizem a verdade.

Só a casa ficará de pé a olhar a planície. E
dentro dela os sonhos e as recordações do verão -
retratos dos lugares que nunca visitámos, uma camisa
de linho no espaldar da cadeira, um livro para sempre
interrompido sobre a cama. Ouvíamos uma canção triste
na grafonola velha. Dançaríamos o ano inteiro, disseram
uma noite ao ver-nos atravessar a sombra da lua.
Ignoravam, então, o inverno.

Maria do Rosário Pedreira
A Casa e o Cheiro dos Livros

5 comentários:

Licínia Quitério disse...

De arrasar. Poeta maior do nosso tempo.

Anónimo disse...

Texto lindíssimo.
Para ler e reler...

mixtu disse...

O inverno é amigo... necessário...

sobre a escrita... excelente...

"Só a casa ficará de pé..."... as casas resistem... até quando,

são de granito... o telhado de colmo voará... mas o ferrolho permanecerá... até que um dia nasce a primavera e veremos os pastores, os agricultores, e as pastorinhas... um dia, a escola caiada reabrirá... e fechou... não pelo inverno, ou melhor... fechou pelo inverno da vida...

Mas... como nunca se sabe como será o inverno,deixo um 1/4 de beijo, posso precisar deles no inverno para me aquecer :)

APC disse...

O Inverno da vida... Cortante!

Anónimo disse...

E quando a terra ganhar desesperadamente o céu, ele se derramará em flores, na Primavera...
Afectuosamente