segunda-feira, 21 de abril de 2008

Ao entardecer...

Nada me pertenceu - nem o vestido indecente
que pedi emprestado para te oferecer os seios, nem
os seios, que eram já teus muito antes do vestido.

O sorriso que devassou brevemente o meu rosto não
me pertenceu; porque ninguém o viu antes de ti,
nem o espelho se convenceu a devolver-mo.

Todas as coisas que a casa guardou quando partiste não
me pertenceram; porque, ao tocar-lhe nos dias mais
cinzentos, sinto que é pelo calor dos teus dedos que ainda
gritam; e mesmo a cama onde só teu corpo era bem-vindo
nunca chegou a ser inteiramente minha, pois, de contrário,
encontraria nela o meu lugar, e não o teu vazio.

Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que
acontecias dentro do meu corpo,das outras vi-te abraçar a
solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem
te mantinha vivo. O meu coração, contudo, sempre

te pertenceu - e a mão desesperada que o procura não
sente bater longe do teu peito. E mesmo os poemas todos
que escrevi não me pertenceram, porque essa vida
que pulsava no papel levaste-a tu contigo na hora
em que te foste - e a que tenho agora é mais
branca e vazia do que a morte, não é vida nem nada

que eu queira alguma vez que me pertença.

Maria do Rosário Pedreira
O Canto do Vento nos Ciprestes

9 comentários:

Luis Eme disse...

lindo, como quase tudo da Maria do Rosário...

com doses industriais de amor, de solidão e saudade...

escolhido, porque sim.

beijos M. Maria Maio

FRANCO disse...

é como ser do vento que passa...

Maria disse...

Quanto mais leio M. Rosário Pedreira mais tenho vontade de a ler...
é verdade que o poema é triste (como outros), mas é tão bonito...

Beijinho, Maria

o Reverso disse...

e
teu não sou,
mesmo
quando me dou.

o Reverso disse...

só quando aqui venho me lembro das saudades que tenho das tuas janelas.

rasga-as também nos teus telhados: mostra-me as tuas núvens.

Ka disse...

"vi-te abraçar a solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem te mantinha vivo"

lindíssmas estas palavras embora muito tristes

Beijoca

pin gente disse...

lindíssimo... e deixa um engolir em seco

abraço

Oris disse...

Lindo este poema.

Não conhecia Maria do Rosário Pedreira e fui aprendendo a apreciá-la através dos teus posts.
Obrigada por isso.

Beijitos

Maria P. disse...

Luís M.
escolhido, porque sim.Sim.
Beijos*

Mário,
vento que passa devagar...
Beijinhos*

Maria,
tristemente belo...
Beijinho*

Triliti Star,
por aqui deixo sempre janelas...
Beijinhos*

Ka,
palavras sentidas...
Beijoca*

Luísa,
nem mais...
Beijinho*

Oris,
para mim é sempre um prazer ler e reler esta poesia...
Beijinho*